Suba a minha oração perante a vossa face como incenso, e as minhas mãos levantadas sejam como o sacrifício da tarde. {Salmos 141:2}

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Escreva


Quando se escreve, às vezes é preciso abrir mão de tudo e simplesmente ordenar-se: - escreva! Comida no forno, trabalho por fazer, hora de dormir, o que seja; o maior pecado do escritor é resistir ao imperioso chamado da pena.

Mas escrever sobre o quê, ele logo se pergunta. Parece que o ato de escrever sempre tem de ter um porquê e um sobre o quê, além dos execráveis e dolorosos como e com que fim (nos dois sentidos da palavra "fim"). O próprio impulso da escrita é tão voraz e inacessível que por vezes se torna impossível pausar-lhe, fazer-lhe qualquer dessas perguntas; o máximo que se consegue é seguir-lhe o rastro, no ritmo sempre atrasado do lápis sobre o papel, da luta retardada entre a coordenação da mão e a do pensamento.

"Lutar com as palavras é a luta mais vã", já dizia o nosso nobre guerreiro (e vencedor) Carlos Drummond de Andrade. O guerreiro da palavra é talvez o menos nobre e mais ensanguentado, pois sua arma fere não só os outros, mas ele mesmo, enquanto luta. É uma luta desleal entre interior e exterior, numa mediação complexíssima que pode resultar tanto em medalhas de honra quanto em aversão e ostracismo, sem critérios suficientemente claros.

O que se sabe, quando se tem este espírito maldito de escritor, é que uma vez nascido com esta marca, não se pode ignorá-la, sob o risco de definhar em tédio e em mediocridade, sufocando até a morte em sílabas engolfadas. Portanto, se você se identificou com algo do que se disse até agora, escreva! Simplesmente escreva, sem se perguntar se é bom ou ruim, pois até o mundo está sempre em dúvida sobre isso. Além do mais, quem pode criticar o que se faz simplesmente para poder existir?

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.

Luís Vaz de Camões, em "Sonetos"

domingo, 5 de setembro de 2010

Leitura póstuma dos poetas sempre vivos



Assombra-me um arrepio

Ao ouvir dos versos a música,

Neste sarau tardio,

A soar sua beleza súbita


Opera-se mágica tal

Quando se encontram palavra e voz

Que subleva-se calor irreal

Entre os poetas lidos e nós


Homenagem tão grande é esta leitura

Que não podemos adivinhar-lhe a glória

De revelar a mais perpétua das honras

A qual dá-se, em secreto, nesta hora


Pois não habita em um nome

Pomposo, em ouro, num livro a luzir

Mas apenas na alma de um homem

Que, ao ler o poema, pôde sorrir...