Suba a minha oração perante a vossa face como incenso, e as minhas mãos levantadas sejam como o sacrifício da tarde. {Salmos 141:2}

sábado, 9 de agosto de 2008

Autopsicografia ~ Fernando Pessoa



O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.


E os que lêem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.


E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

Ética


Certo dia, estava eu perto do fim da fila do Restaurante Universitário, já me preparando psicologicamente para esperar bastante, quando meu desconhecido colega da frente, que depois descobri ser do curso de filosofia, interrompe meus pensamentos com o seguinte comentário:
- É impressionante como esse pessoal fura a fila, não é?
- Ah, é! Eles vão entrando, na maior “cara-de-pau”.
- Imagina só que profissionais serão esses... Eu vou continuar fazendo a minha parte.
- É verdade, mas se a pessoa que for passada para trás não reclamar, tudo vai continuar como está. Nós também temos que mudar a nossa atitude.
- As pessoas já estão acostumadas. O errado, quando é conveniente, se torna certo, ou no mínimo menos errado.
Meu colega tirou um livro da mochila e começou a lê-lo, dando aqueles sinais não-verbais, porém inconfundíveis, de fim de conversa. Eu fiz o mesmo, mas meus pensamentos continuavam no assunto. Eu me perguntava, então: “Se em um ambiente elitizado como uma universidade, onde se supõe que haja pessoas educadas, acontecem incidentes lamentáveis como este, o que se pode esperar do resto da população? O que podemos esperar de nós mesmos, que somos a esperança da nação, se desde o início agimos de forma corrupta e omissa?”
Sabemos que “furar” a fila não é algo realmente tão grave assim. No máximo, pode gerar um congestionamento e fazer com que os que estão mais atrás esperem um pouco mais para almoçar. Entretanto, refletindo sobre ética, percebemos que é de pequenas atitudes que ela se constitui. Desde um pequeno “furo” em uma fila até um desvio de verba pública, o princípio é o mesmo: obter benefício próprio, fingindo que o outro não existe. Kant nos diz que a Natureza nos impele a agir por interesse, sendo este a forma natural do egoísmo que nos leva a usar coisas e pessoas como meios e instrumentos para alcançar o que desejamos. Contudo, não podemos simplesmente dar vazão a todo tipo de desejo natural, submetendo os outros à nossa necessidade/vontade. Existe em nosso redor, além de pessoas a quem devemos respeitar por sua condição humana, toda uma cultura que já estava estabelecida antes de nascermos. Hegel critica Kant e Rousseau por não terem atentado para a relação do sujeito humano-Cultura e História. Além de seres livres, o filósofo afirma que somos seres históricos e culturais. Isso significa que, além de nossa vontade individual subjetiva, existe ainda outra vontade, muito mais poderosa, que determina a nossa: a vontade objetiva, inscrita nas instituições ou na Cultura. Ele diz ainda que uma sociedade entra em declínio quando os membros contestam os valores vigentes e agem de modo a transgredi-los.
No Brasil, a falta de ética na política está em evidência, sendo discutida amplamente, mas não é somente nesse âmbito que ela acontece. O esfacelamento das ideologias tem causado confusão ao se pretender o estabelecimento de princípios de conduta. A falta de referenciais éticos afeta toda a sociedade, que tem duas maneiras de reagir: a revolta ou a conivência. A última é, certamente, a mais cômoda. Não é preciso pensar muito, nem se esforçar demasiadamente... É só aceitar tudo pronto, e seguir as práticas dos outros, sem analisá-las. A revolta é encontrada mais visivelmente em artigos de jornais, revistas, ensaios filosóficos e sociológicos; porém, na prática, é algo raro de se ver.
Em situações simples do nosso cotidiano, como esta da fila, verificamos que, ao fazer uma reclamação diante de uma situação considerada errada ou desvantajosa coletivamente, o indivíduo ainda é rechaçado pelo grupo, que o trata com olhares de reprovação e com impaciência. Apenas quando a situação toma proporções maiores, os outros os seguem com uma mentalidade de “rebanho”, isto é, muitas vezes sem ter conhecimento pleno daquilo que está sendo reclamado; simplesmente seguindo os líderes.
Assim, notamos que, sem ética, a vida em sociedade vira um caos, não podendo vir disto nenhum progresso. O código moral não tem um fim em si mesmo, mas seu objetivo principal é justamente garantir a integridade do grupo social e o bem-estar dos indivíduos que o constituem.

Renata Lima.