Suba a minha oração perante a vossa face como incenso, e as minhas mãos levantadas sejam como o sacrifício da tarde. {Salmos 141:2}

sábado, 19 de junho de 2010





Meus olhos só podiam ser castanhos
Pois sou eu toda tão castanha,
Tão comum
E ao mesmo tempo, tão estranha
Que outra cor, ao me fitarem,
Não poderiam encontrar
Senão a mais comum de todas
Porém profunda e forte
Como um sulco na mais antiga árvore
De tronco retorcido.

sábado, 12 de junho de 2010

separação


Há um quê de beleza na separação
Não sei por que a surpresa
A vida é partida e chegada
Nisto reside a sua beleza

Acaso há olhar mais lânguido
Do que aquele que, ansioso,
Vê o amado, indiferente, passar?
Há, porventura, cena mais comovente
Que uma moça na janela a chorar?

Na ausência mora algo de delicado
Uma súbita revelação do ser que habita
O mais profundo da alma
Este ser que tudo perscruta e tudo conhece
Que já pressentia a partida
Muito antes que acontecesse

domingo, 6 de junho de 2010

Anamorfose - ou não

Era uma tarde chuvosa e pouco importava que alguns - principalmente crianças, sempre elas! - enfrentassem a tempestade, ela não ia arredar pé daquela mercearia. Mas logo agora, essa chuva? Não podia haver outra hora para os céus chorarem a tragédia que veem lá de cima? Ana não viu outra saída senão desacelerar seus passos, seus pensamentos (sempre tão frenéticos) e simplesmente parar embaixo do toldo da venda.

O tempo - o secreto inexprimível, que não se sabe quem inventou: Deus ou o homem - revelou então sua mistura pastosa com o espaço: eis a relatividade, diante dos seus olhos! Crianças correndo e gritando na rua, trovões, um caminhão parado, xampus, balinhas, ração para gato. Os olhos de Ana passeiam para lá e para cá; às vezes encontram outros olhos e logo fogem, sem encontrar ponto onde se fixar. Ana começa, então, a ler rótulos, para não sentir o agudo pulsar do tempo passando lento...

Chegam algumas pessoas no mercado, também tentando se abrigar do temporal. Alguns têm guarda-chuva, compram algo e simplesmente seguem seu caminho. Outros, porém, adentram o estabelecimento esbaforidos, com aquela vergonha sem sentido que sentimos quando a água nos molha os cabelos, a roupa e leva consigo nossas máscaras.

O fato é que o tempo estava passando, ainda que lento, e a agonia ativista de Ana levava-a a regulares ataques de ansiedade. De cinco em cinco minutos, lembrava-se de algo que estava por fazer, e a maldita chuva não a deixava ir!... Pois a chuva não deixou mesmo, e abriu-se de vez um buraco na tarde.

De repente os olhos de Ana encontraram os da atendente do caixa, e não fugiram medrosos. De repente tudo se desarmou e só restaram eles, os cabelos bagunçados, as roupas manchadas e os olhos puros e simples. A atendente foi quem quebrou o silêncio:

- Está vindo do trabalho?
- Estou, sim... Essa chuva que nos pega de repente, hein?
- Pois é... Um atraso de vida.

Foi aí que Ana reparou que aquela moça, que a havia atendido tantas vezes, devia ter praticamente a sua idade. Tinha um corte de cabelo parecido com o seu. Tinha um nome, e era Joana! Até o nome era quase o mesmo... Que mais teriam em comum? Reparou que ela tinha olhos, que tinha olhos verdes, e que havia luz nos seus olhos.

Mal trocaram mais uma frase, porém, e a chuva passou. Despediram-se com voz de amizade, com as vogais alongadas em tom jovial. Ana foi para casa pensando nessas pessoas-função, nessas pessoas-máquina com as quais nos deparamos todos os dias, mas não as enxergamos; somente esperamos que o serviço seja executado, e rápido.

Na outra semana, Ana foi ao mercado, atravessou sorrateira e constrangida a frente da loja, evitando o olhar da atendente - qual era mesmo o seu nome? -, pegou o que queria, e foi até o caixa. Joana lançou-lhe um olhar esperançoso e só recebeu um levantar de sobrancelhas e um leve aceno de cabeça. Que bom que hoje não está chovendo...