uma vida mediada


Tenho pensado sobre a minha relação com o celular e percebi que o problema vai muito além das redes sociais: a nossa vida toda tem sido mediada pela tecnologia, a ponto de afetar os nossos pensamentos e a nossa percepção das coisas ao redor. Até que ponto isso será inofensivo? 

Tudo bem, é muito prático pagar as contas por um clique em vez de imprimir um boleto e ir até uma agência. Mas será que essa praticidade não nos faz perder a noção do dinheiro? Por vezes me pego pensando que sim. Não temos mais a real noção de quantia devido à falta de volume em nossas mãos, à falta de materialidade. E isso acontece com diversas outras coisas em nossa vida cotidiana: trocar mensagens com amigos em vez de ligar ou conversar pessoalmente, enviar e-mail em vez de se demorar em uma reunião, tirar foto de algo e postar em vez de mostrar para alguém que está ao lado, interagir com pessoas distantes ou até desconhecidas em vez de dar atenção a quem está presente. Nem estou falando das outras mil pequenas tarefas que deixamos de fazer e delegamos ao celular, que tanto deixam nosso cérebro preguiçoso, mas a essas que tornam nossa vida mais virtual do que real, cada vez menos relacional. Percebo um grande desconforto em pessoas que estão comigo em situações de espera e precisam mexer no celular para amenizar essa vergonha. Por vezes também recorro a esse artifício. E assim vamos nos encolhendo em conchas, em nossos pequenos mundos.

Fico preocupada a partir do ponto em que me sinto um pouco fora do controle da minha vida, das minhas decisões e dos meus pensamentos. Sinto também que a vida como eu a conheci na infância e na adolescência, longe dos smartphones, era mais real, melhor. Só tive um smartphone com mais de 20 anos de idade, pois resisti em adquirir um mesmo depois de lançado. Eu imaginava - sem ter a real dimensão - o estrago que ele poderia fazer em troca de tanta comodidade na ponta dos meus dedos (no início era canetinha rs). Agora que eu passo dos 30, avalio esse tempo e me sinto cansada do mundo virtual, das redes sociais e suas tendências, da dinâmica viver-postar-obter reconhecimento virtual e seu looping infinito de insatisfação. Já reduzi minhas redes ao mínimo necessário e ao uso profissional, mas vez ou outra ainda me pego querendo compartilhar coisas pessoais. E aí me pergunto várias vezes: isso será útil para alguém? Para que estou postando isso? Não estarei me expondo demais? E, na maioria das vezes, desisto de publicar. 

Isso também acontece com os meus textos, mas estou considerando seriamente publicar este, devido à relevância social do assunto - afinal, não é algo que ocorre só comigo. Além do mais, quase ninguém lê blogs hoje em dia - o que é uma pena, pois era muito melhor quando compartilhávamos pensamentos e raciocínios do que fake news e vídeos de dancinhas. Ainda é possível compartilhar pensamentos? Sim, vejo muita coisa interessante nas redes sociais nesse sentido. Mas vejo também muitas falhas devido à pressa - erros de escrita, falta de pesquisa mais profunda, falta de reflexão maior - que se dão menos em textos escritos.

Mas voltando ao ponto inicial: a mediação. Estranho a mim mesma quando cumpro uma tarefa cotidiana ou recebo algo bacana pelo correio e penso que devo tirar uma foto e postar aquilo. Essa é parte da mediação de que estou falando: a janela invisível entre a realidade e o mundo virtual que passou a existir na nossa percepção. Também vejo isso na linguagem, pois uso expressões em minha fala que vêm de bordões das redes sociais e me pergunto depois por que usei aquilo. Mais uma vez: entre o que desejamos nomear/ expressar, que está lá no real, e a nossa linguagem, existe o imaginário virtual o tempo todo em nossa mente que determina o nosso repertório verbal. Então, sem que nos demos conta, estamos vendo e falando como aquilo que vemos nas redes sociais. Se isso não é preocupante, não sei o que mais pode ser. É como estar imerso em um meio que determina a sua visão de mundo e o seu discurso, mas sem saber. 

Talvez isso não incomode algumas pessoas, mas a mim, incomoda, pois preservo muito a minha liberdade de consciência. Também gosto muito de preservar a minha inteligência e desejo mantê-la íntegra até a velhice (acho que todos deveriam fazê-lo). Além disso, sinto que o meu emocional é muitas vezes afetado por essa relação mediada com a vida. Uma coisa virtual pode me afetar de maneira real por muito tempo e isso é estranho. Não sou o tipo de pessoa que passa facilmente de uma publicação para a outra, que logo se esquece do que viu. Creio que não sou a única, embora não seja parte da maioria.


Então, concluo que é necessário reduzir mesmo o uso do celular em tudo: desde coisas pequenas como fazer contas, memorizar números de telefone ou despertar de manhã, até "grandes coisas" como estar presente na vida de outras pessoas. Cada vez mais percebo o quanto é frágil o vínculo virtual que temos mantido com os outros nos últimos dez anos - justamente por isso, por ser mais virtual do que real. Assim, tenho procurado visitar pessoas em vez de perfis, marcar encontros em vez de meetings, ligar em vez de mandar mensagem, esse tipo de coisa. Olhar para mim e para minha vida não com os olhos de perfeição inatingível da internet, mas com os olhos da realidade e suas falhas inevitáveis. Pensar e perceber pelos meus próprios sentidos e faculdades mentais, pelos meus princípios morais e pela minha história de vida. Uma vida mediada por mim mesma.

Comentários

  1. Que texto preciso! Parabéns pela sensibilidade em nos levar textualmente por tantas janelas! Texto assertivo e provocativo de muitas reflexões. Tenho ponderado sobre isso há um tempo também. Teu texto contemplou minhas sensações e percepções. Soma-se a isso, o modus operandis pós-pandemia, dessa vida mediada (por vezes - controlada), que se intensificou com as demandas de trabalho fundidas ao virtual. Particularmente, essa tem sido minha soma do quadrado dos catetos em looping...

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